Stephan Mothe – Os resultados do 19º Congresso do Partido Comunista da China e as repercussões para as relações entre a China e a América Latina

29 octubre 2017

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Os resultados do 19º Congresso do Partido Comunista da China e as repercussões para as relações entre a China e a América Latina

Por Stephan Mothe

26/10/2017

Resultados do Congresso: Os novos nomes

Como esperado, o 19º Congresso do Partido Comunista da China, que ocorreu entre o 18 e 25 de outubro, confirmou a continuidade de Xi Jinping na presidência do país mais populoso da Terra. Xi foi elevado, no processo, a um novo patamar de poder,  sendo o “Pensamento Xi Jinping do socialismo com características chinesas para uma nova era” incluído na Constituição do Partido Comunista, a primeira vez desde Mao Zedong que um líder chinês tem a sua contribuição adicionadas à carta magna chinesa enquanto ainda exerce o mandato.

O Pensamento Xi Jinping é composto por 14 princípios fundamentais, o principal dos quais é a primazia do controle do Partido sobre todos os aspectos da governança do país, especialmente na esfera militar. Além disso, inclui o fortalecimento do combate à corrupção, o aprofundamento de reformas, a adoção de políticas sociais e a convivência harmoniosa entre o homem e a natureza. Enfatiza também a manutenção do acordo de “um país, dois sistemas” com Hong Kong e a reunificação da ilha de Taiwan sob o regime de Beijing.

Além de Xi, Li Keqiang também foi reconfirmado como primeiro ministro. Xi e Li continuarão a integrar o Comitê Permanente do Politburo, instância máxima do poder político na China. Embora haja sido especulado que Xi buscaria manter no cargo Wang Qishan, oficial a cargo do combate à corrupção, isso acabou não acontecendo. Assim, ele e os outros quatro membros do comitê,  foram aposentados pela regra implícita de idade.

Na escolha dos seus substitutos, o Partido deu um claro sinal da consolidação de poder nas mãos de Xi, já que nenhum dos novos membros tem menos de 60 anos de idade. Esse seria o requisito para identificar um potencial sucessor, que poderia assumir em cinco anos e ficar ao mando do país por uma década. A falta de um claro herdeiro abre a possibilidade de que Xi busque um terceiro turno em 2022 ou nomeie mais tarde alguém sob a sua influência.

Entre os cinco novos membros, Xi conseguiu a inclusão de alguns aliados, nomeadamente Li Zhanshu, Wang Huning e Zhao Leji. Já Wang Yang e Han Zheng foram emplacados por outras correntes do Partido.

Li Zhanshu, de 67 anos, tem trabalhado com Xi desde a década de 1980. Anteriormente diretor da Administração Geral do Comitê Central do Partido, ele provavelmente será nomeado presidente do Congresso Popular Nacional, a câmara legislativa do país. Li, conhecido pela adesão irrestrita ao socialismo, tem acompanhado Xi em várias viagens e atuado como enviado especial à Moscou. Como Xi, forma parte da facção dos príncipes, filhos dos líderes da Revolução Comunista.

Wang Huning, de 62 anos, é considerado um dos ideólogos por trás da ascensão de Xi. Como professor universitário, defendeu o neo-autoritarismo, pregando a necessidade de um líder forte para garantir a estabilidade em tempos de transição. Ingressou na política como redator de discursos e conselheiro nas administrações de Jiang Zemin e Hu Jintao, e nos últimos anos tem sido diretor do Escritório Central de Pesquisa Política, que fornece orientação para as grandes decisões do governo. Espera-se que ele esteja a cargo do controle ideológico, assegurando que a mídia, as escolas e universidades e o Partido se alinhem à liderança de Xi.

Zhao Leji, o mais jovem dos nomeados, com 60 anos, perfila-se como futuro chefe da Comissão Central para a Inspeção de Disciplina, responsável pelo combate à corrupção. Antes a cargo do Departamento de Organização, tem servido como porteiro de Xi, controlando as promoções dos oficiais dentro do Partido e assegurando que os quadros dirigentes sejam leais ao presidente.

Wang Yang, de 62 anos, ganhou fama durante os cinco anos que passou no comando da província meridional de Guangdong, uma das mais ricas do país. Entre 2007 e 2012 supervisou uma série de reformas liberalizadoras naquela província, dotada de uma forte base industrial exportadora e do ascendente centro financeiro de Shenzhen, que a integram aos mercados globais. Mais recentemente ele tem sido o vice-primeiro ministro a cargo da agricultura e do comércio exterior, e é cotado para o posto de vice-primeiro ministro executivo. Adepto de um maior papel para os mercados na toma de decisões econômicas, provavelmente seja o membro que mais diverge da visão centralizadora e estatista de Xi.

Por último, Han Zheng, de 63 anos, é associado à “facção de Xangai”, sob influência do ex-presidente Jiang Zemin. Foi justamente nessa importante cidade onde Han desempenhou a maior parte da sua carreira, primeiro como prefeito e logo como chefe local do Partido. É creditado com a rápida modernização da cidade, incluindo o desenvolvimento do novo distrito de Pudong, cartão postal da cidade, e eventos como a Exposição Mundial de 2010. Trabalhou brevemente com Xi, antes de que este fora elevado ao Politburo em 2007.  Provavelmente assumirá a presidência da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, órgão de consulta composto por representantes de partidos da Frente Unida, grupos de interesse, associações temáticas e organizações populares, entre outros.

Fora do Comitê Permanente, houve duas promoções notáveis de aliados de Xi no Politburo.

O primeiro é Liu He, de 65 anos, um dos principais conselheiros econômicos do Xi. Educado nos Estados Unidos, ele tem promovido reformas para responder ao crescimento da dívida pública e reduzir as vulnerabilidades da economia chinesa, incluindo os incentivos perversos advindos das garantias estatais. Chefe do Partido e vice-diretor na poderosa Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, ele pode agora suceder Wang Huning ao mando do Escritório Central de Pesquisa Política, o que o colocaria em controle dos esforços de reforma do país.

O segundo é Chen Min’er, chefe do Partido na importante cidade de Chongqing. Com 57 anos de idade, ele é ainda considerado um dos possíveis sucessores de Xi, apesar de não haver sido eleito ao Comitê Permanente. Chen foi escolhido para substituir Sun Zhengcai, também considerado um potencial sucessor até ser removido do posto em julho e expulso do Partido apenas duas semanas antes do 19º Congresso, acusado de corrupção e de conspirar contra o mesmo Xi Jinping para assumir o controle do Partido.

A indicação de Chen é prova da confiança depositada nele por Xi. Chen havia trabalhado no Departamento de Propaganda da província de Zhejiang enquanto Xi era chefe do Partido da mesma, desenvolvendo uma estreita relação com o atual presidente. Chen recentemente desenvolveu a sua carreira em Guizhou, uma das províncias mais pobres do país, mas também uma das que mais crescem. Como governador, vice-chefe e logo chefe do Partido na província, Chen contribuiu para um dos principais objetivos de Xi: a erradicação da pobreza extrema até 2020. Em um aceno ao presidente, Chen adotou um esquema de coletivização modelado naquele implementado anteriormente por Xi em Zhejiang. Xi retribui com a promoção a Chongqing.

Além de Liu He e Chen Min’er, outros nomes importantes no Politburo incluem Cai Qi (61, chefe do Partido em Beijing), Ding Xuexiang (55, diretor do Secretariado Geral do Partido), Hu Chunhua (64, chefe do Partido em Guangdong), Chen Quanguo (61, chefe do Partido na Região Autônoma de Xinjiang) e Li Hongzhong (61, chefe do Partido em Tianjin). Estes dois últimos tem sido destacados pela mídia oficial como “estrelas futuras” do Partido.

 

Repercussões para a política externa chinesa

No seu maratônico discurso no primeiro dia do Congresso, Xi já havia reiterado o seu compromisso com o “grande rejuvenescimento da nação chinesa”, também conhecido como “sonho chinês”, o desejo de construir um país forte e próspero. Estabeleceu dois “objetivos centenários”: construir uma sociedade “moderadamente próspera” até 2021 (centenário da fundação do Partido Comunista) e uma nação “completamente desenvolvida” até 2049 (centenário da fundação da República Popular). Identificou como principal desafio a essa agenda a contradição entre o “desenvolvimento desequilibrado e inadequado” e as “sempre-crescentes demandas do povo por uma vida melhor”.

Reforçou, ademais, a sua vontade de tornar a China uma liderança global, comprometida com a integração dos mercados globais, o combate à mudança do clima e o desenvolvimento. Por primeira vez, fez menção à contribuição que o modelo político chinês pode dar ao mundo, apresentando o socialismo com características chinesas como uma “nova opção” para outros países em desenvolvimento que buscam crescer enquanto mantêm a sua autonomia. A China, por sua vez, não copiaria os sistema de outros países mas buscaria aprender de outras civilizações. Enfatizando o advento de uma “nova era”, Xi não falou em democratização, mas em modernização.

Essa modernização incluiria necessariamente as forças armadas, reorganizadas por Xi no seu primeiro mandato. Xi, que acumula o cargo de chefe da Comissão Militar Central, prometeu criar uma força militar de primeira classe até meados do século, priorizando a capacidade de combate como principal critério de avaliação. O processo de profissionalização de oficiais e inovação em equipamentos e armas deve acelerar nos próximos anos, acompanhando crescimento dos investimentos em defesa. A afirmação da soberania chinesa no Mar do Sul da China, onde a construção de instalações militares em arrecifes disputados aumentou as tensões com países vizinhos e com os Estados Unidos, foi apontada por Xi como uma grande realização dos últimos cinco anos.

No campo da diplomacia econômica, a Iniciativa do Cinturão e da Rota continua sendo a principal aposta. De fato, a iniciativa foi incluída na Constituição do Partido, sinalizando o seu caráter estratégico e permanente na projeção internacional chinesa. Na edição inaugural do Foro do Cinturão e da Rota, em maio, Xi anunciou a criação de um fundo de US$124 bilhões para financiar projetos relacionados à iniciativa, que envolverá laços comerciais e de infraestrutura física. O intuito é reeditar as antigas rotas de seda terrestres e marítimas que percorriam a Eurásia e o Oceano Índico, conectando mais de 60 países e com a China no papel central. A iniciativa cumpre também um papel na expansão do soft power chinês, angariando a boa vontade dos países receptores de investimentos: empresas chinesas investiram US$33 bilhões em adquisições nesses países nos primeiros oito meses de 2017[1].

Alguns críticos advertem que a China utilizará a iniciativa para exportar a sua capacidade industrial excedente em detrimento do das indústrias locais, e que os grandes empréstimos que financiarão os projetos de infraestrutura  podem gerar um endividamento insustentável nos países em desenvolvimento. A tendência a empregar empresas e mão de obra chinesa nesses projetos e a falta de transparência e de salvaguardas ambientais e sociais, críticas recorrentes contra as atividades chinesas na África e na América Latina, também continuariam a ser motivo de preocupação. O risco de serem criadas novas relações de dependência entre o Sul Global a China, interessada principalmente no acesso a recursos naturais e a mercados consumidores, é latente.

O termo-chave enfatizado como objetivo da política externa chinesa na “nova era” é a “comunidade de destino comum”. Originalmente apresentado por Hu Jintao em relação ao entorno regional da Ásia-Pacífico, Xi adotou o termo e eventualmente ampliando a sua acepção para a “construção de um futuro comum para a humanidade”. Após a sua visita à Suíça em janeiro, que incluiu discursos no Foro Econômico Mundial em Davos e no Palácio das Nações em Genebra, o conceito foi incluído em uma resolução do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e endossado pelo Secretário-Geral António Guterres.

A “comunidade de destino comum” implica um novo padrão de relações internacionais pautado pela cooperação em torno de interesses e responsabilidades compartilhadas. Segundo o diplomata chinês Wang Yiwei, os interesses compartilhados refletem a realidade da interdependência econômica, enquanto as responsabilidades compartilhadas correspondem à dimensão política, com ênfase nos desafios de segurança. O novo modelo opõe-se à mentalidade de competição de soma zero, associada à Guerra Fria, em favor da cooperação para o ganho mútuo. A “comunidade de destino comum” aponta não a atender aos estreitos interesses nacionais da China, mas ao benefício do mundo com um todo, garantindo a paz e o desenvolvimento.

No seu discurso no Congresso, Xi asseverou que “nenhum país pode responder sozinho aos muitos desafios enfrentados pela humanidade, e nenhum país pode se dar ao luxo de se retirar ao auto-isolamento.” A referência implícita à involução da política externa dos Estados Unidos sob Donald Trump revela a intenção de elevar a China a um papel de liderança no sistema internacional. A atitude mais assertiva difere daquela dos últimos anos, pela qual a China se autodeclarava um país em desenvolvimento e aderia ao famoso ditado de Deng Xiaoping: “esconda a suas habilidades e seja paciente; mantenha um perfil baixo; e nunca busque protagonismo.”

As declarações de Xi, pelo contrario, caracterizam uma admissão da ambição de reformar a governança internacional para acomodar a China como grande potência, e a capacidade do país de conduzir esse processo. Esforços nessa direção já tem sido encaminhados por meio da concertação no âmbito dos BRICS e da Organização de Cooperação de Xangai, a fundação do Novo Banco de Desenvolvimento e do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura e o lançamento da Iniciativa do Cinturão e da Rota. Ainda, dentro das instituições preexistentes, a China conseguiu inserir o yuan dentro do cesto de moedas de reserva do Fundo Monetário Internacional, ganhou maior peso tanto no FMI quanto no Banco Mundial, emplacou os novos diretores da União Internacional de Telecomunicações e da Interpol e ampliou a sua participação nas operações de paz da ONU. Tudo indica que a quantidade de exemplos continuará crescendo nos próximos anos.

 

O que significa para as relações com a América Latina

O novo esquema global que China se encontra desenhando certamente terá implicações para os países da América Latina, que deverão tomar uma postura proativa para aproveitar as oportunidades e responder aos desafios que surgirão. A renovação do mandato de Xi indica uma tendência de continuidade nas relações entre a China e a região, marcadas principalmente pelo foco na dimensão econômica – comércio, investimentos e empréstimos –, mas acompanhadas cada vez mais pela concertação política, a cooperação militar e os intercâmbios culturais. A aceleração das mudanças no ordenamento mundial, contudo, tem o potencial de estabelecer novos padrões para a condução dessas interações.

A manutenção das tendências atuais deve-se fundamentalmente à dinâmica dos interesses chineses, que permanecem os mesmos. A China continuará a precisar de matérias primas para abastecer as suas indústrias e de mercados para absorver as suas exportações. Ao mesmo tempo, a urbanização e a modernização, acopladas ao esforço de transição para uma sociedade de consumo aumentarão a demanda por alimentos e por bens de consumo de maior valor agregado, abrindo novos nichos para os países latino-americanos. No âmbito da política de “ir pra fora”, as empresas chinesas continuarão a sua internacionalização e os bancos chineses continuarão a financiar projetos de infraestrutura, promovendo a sua execução por empreiteiras chinesas. Esses objetivos econômicos são estratégicos para a continuação da ascensão chinesa e a afirmação do regime do Partido Comunista no poder.

O papel vital da América Latina nesse processo tem sido declarado várias vezes nos últimos anos. Em julho de 2014, durante a sua visita ao Brasil para participar da Cúpula China-CELAC em Brasília e da Cúpula dos BRICS em Fortaleza, Xi Jinping propôs o “Quadro de Cooperação 1+3+6”. Os números referem-se a um plano (o Plano de Cooperação China-CELAC 2015-2019), três veículos (comércio, investimentos e cooperação financeira) e seis campos (energia, infraestrutura, agricultura, manufatura, inovação e informática). O quadro veio acompanhada pelo compromisso de ampliar o comércio entre a China e a região a US$500 bilhões e o estoque de investimentos chineses a US$250 bilhões em dez anos. Também foi acordada a criação de diversos fundos, linhas de crédito e intercâmbios[2].

Em novembro de 2016, a China lançou o seu segundo “white paper” (plano estratégico) sobre a América Latina, atualizando o anterior, de 2008. O documento reiterou a priorização da CELAC (que exclui os Estados Unidos e o Canadá) como o ponto de contato multilateral da China com a região, e dispôs que, além do diálogo econômico, fosse tratada a coordenação política, avançando tanto na “consolidação de sistemas multilaterais de comércio” quanto na “reforma da governança global”[3]. É notável que a construção da “comunidade de destino comum” foi destacada no prefácio do documento, que enumera instâncias de cooperação nos campos político, econômico, social, cultural e interpessoal, de colaboração internacional e de paz, segurança e assuntos jurídicos. Dentro da compreensiva lista, a cooperação espacial, marítima e militar; a coordenação na governança global econômica; a implementação da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável e a resposta à mudança do clima; o combate ao terrorismo; e a governança da Internet merecem atenção especial por representar novos frentes com implicações para além da região.

O avanço chinês na América Latina certamente não passa despercebido em Washington, abrindo a possibilidade de uma queda de braço por influência na região. Até agora, a disputa geopolítica tem se desenvolvido principalmente no âmbito do Pacífico, sendo que a saída estadunidense da Parceria Transpacífico constituiu uma vantagem para a China nesse teatro. Na América Latina, a China tem se beneficiado indiretamente do distanciamento entre os chamados países bolivarianos e os Estados Unidos, sem, todavia, se alinhar ou promover explicitamente o sentimento antiamericano. Aproveitou a falta de ênfase dada à região pela Casa Branca após o 11 de setembro para multiplicar e ampliar as suas parcerias estratégicas com vários países da região, criando comissões bilaterais de alto nível para centralizar o diálogo. Essas parcerias foram elevadas a parcerias estratégicas globais em 2016, aumentando a probabilidade de realizar os compromissos delineados no “white paper”.

A administração de Donald Trump não tem dado sinais de que mudará a atitude dos Estados Unidos para com a América Latina. As manifestações do presidente norte-americano a respeito da região tem estado limitadas ao ida e volta sobre o muro na fronteira com o México, à reversão da aproximação com Cuba e às ameaças contra a ditadura de Maduro na Venezuela. De fato, o financiamento chinês tem dado uma sobrevida ao regime de Caracas, ainda que a sua manutenção não seja um objetivo explícito. Mais notável é o fato da China haver desenvolvido e lançado satélites, construído a infraestrutura de controle terrestre e treinado as equipes responsáveis em Venezuela, Equador e Bolívia. A presença chinesa consolida-se ainda na base de monitoramento espacial estabelecida em Neuquén, na Patagônia Argentina. No Brasil, que mantém um programa de cooperação em satélites com a China desde a década de 1980, a estratégica base de lançamento de Alcântara, no Maranhão, atualmente sem parceiro, ganha nova importância.

Outra tendência notável é o recente reconhecimento da República Popular da China pelo Panamá, que antes reconhecia somente o governo de Taiwan. A América Latina e o Caribe concentram grande parte da vintena de estados que ainda reconhecem Taiwan, destacando-se o Paraguai na América do Sul e os países do triângulo norte da América Central.  Uma ressunção da campanha pelo reconhecimento poderá envolver ofertas generosas de investimentos e financiamento, incluindo para o reaparelhamento das forças armadas desses países. A cooperação militar normalmente envolveria, a mais longo prazo, treinamentos, exercícios conjuntos e intercâmbios que fortaleceriam os laços com China. O potencial de cooperação no combate ao terrorismo e em campos não tradicionais da segurança, descrito no “white paper”, também cria possibilidade de expansão da presença de militares chineses na região.

A pesar da diversificação dos assuntos abordados nas relações sino-latino-americanas, contudo, a prioridade deve continuar sendo a econômica. Em primeira análise, o fato da América Latina ficar fora do escopo geográfico do Cinturão e da Rota aparentaria ser um problema e pode explicar a falta de entusiasmo dos governos da região em relação à iniciativa. Entre os países três países da região que participaram do Foro Inaugural em maio, somente o Chile e a Argentina foram representados pelos seus respectivos chefes de estado, enquanto o Brasil enviou o secretário de Assuntos Estratégicos, que sequer tem nível ministerial[4]. O desinteresse revela a falta de planejamento de longo prazo para o aproveitamento das novas redes de fluxos que serão geradas pela iniciativa, e eleva a vulnerabilidade à concorrência de países que se insiram melhor e mais rapidamente nesses arranjos.

Sem essa visão de mais longo prazo, e vale ressaltar que a janela de oportunidade não ficará aberta para sempre, os países da América Latina continuarão a enxergar a China como simples parceiro comercial e fonte de investimentos. Nessas funções, à importância da China não pode ser minimizada. No Brasil, por exemplo, a China ultrapassou os Estados Unidos como maior fonte de investimentos em 2017, com estoques que acumulam quase US$50 bilhões[5]. A crise econômica e política, após uma redução inicial da atividade dos chineses no país, gerou um forte aumento a partir da venda de ativos de empresas afetadas e do entusiasmo do impopular governo de Michel Temer de apresentar dados positivos sobre a economia. Ao mesmo tempo, o descrédito das empreiteiras brasileiras envolvidas nos escândalos de corrupção abriu espaço à concorrência de empresas chinesas em países vizinhos.

Na região como um todo, os investimentos chineses tendem a se concentrar nas áreas de petróleo e gás, mineração, infraestrutura energética e de transportes, manufaturas, finanças e alimentos[6]. Isto reflete os objetivos estratégicos chineses – incluindo o acesso a recursos minerais, energéticos e alimentícios –, as vantagens das empreiteiras chinesas e também o potencial visto por empresas chinesas no mercado latino-americano. Para além das atividades extrativas, os investimentos produtivos tem o potencial de gerar empregos e benefícios indiretos através de um maior compromisso das empresas com as comunidades nas quais atuam. No processo de aumento da presença física de empresas chinesas na América Latina, a situação da segurança e as políticas sociais, ambientais e tributárias adotadas pelos governos desses países se tornarão mais relevantes para a China, acostumada até agora a se abster em relação aos assuntos internos de outros países.

Nesse contexto, os grandes desafios para os países latino-americanos são aumentar o valor agregado das suas exportações a China, garantir que os investimentos gerem benefícios sociais e evitar a dependência excessiva do financiamento chinês. A China é conhecida por utilizar a “diplomacia dos cheques” como instrumento de soft power, nutrindo parcerias estratégicas mundo afora com base no seu poderio econômico, mas isto não deve ser confundido com caridade. O risco de endividamento insustentável já é uma realidade para países como a Venezuela, cuja produção de petróleo está praticamente hipotecada aos chineses. E mesmo no comércio, os desequilíbrios entre as pautas de importação e exportação ensejam vulnerabilidades. Apesar de ter um enorme superávit comercial com a China, o Brasil importa produtos chineses a um custo médio de US$3000 por tonelada, enquanto exporta a apenas US$170 por tonelada[7].

A reversão desses padrões dependerá principalmente da habilidade dos governos e empresários de identificar e explorar os nichos que se abrirão nos novos arranjos durante e após o segundo mandato de Xi Jinping. Uma China mais urbana e próspera certamente precisará garantir a sua segurança alimentar, mas os países latino-americanos deverão investir em aumentar a sua produtividade e subir alguns elos nas cadeias de valor, vendendo produtos processados ou semiprocessados ao invés de crus. Devem também utilizar a cooperação técnica e negociar transferências de tecnologia em acordos de investimentos, além de fazer valer as salvaguardas sociais e ambientais e garantir o emprego de mão de obra local nos projetos chineses. Aproveitando o compromisso chinês com o desenvolvimento sustentável, devem preferentemente empreender projetos de energias renováveis ou verdes, e a infraestrutura de transporte deveria servir para mais que para conectar as minas aos portos.

Não há nenhuma garantia de que os países da região terão êxito nessa missão. Eles enfrentam a concorrência uns dos outros e de países de outras regiões, alguns com a vantagem da menor distância da China ou da mão de obra mais barata, produtiva ou qualificada ou da infraestrutura mais funcional ou das instituições mais estáveis. Não será fácil, mas os países latino-americanos deverão alavancar as vantagens que têm, e desenvolver vantagens novas por meio do investimento inteligente, da negociação franca e, claro, das reformas necessárias. Se alguma coisa ficou clara após o 19º Congresso do Partido Comunista Chinês, é que estamos em uma nova era, e uma nova era requere uma nova mentalidade. Requere a intuição para prever ameaças e o senso para identificar oportunidades, além do ímpeto para responder às primeiras e aproveitar as últimas. Permaneceremos no atraso ou entraremos no futuro?

 

[1] http://www.reuters.com/article/us-china-m-a/exclusive-chinas-belt-and-road-acquisitions-surge-despite-outbound-capital-crackdown-idUSKCN1AW00K

[2] http://www.fmprc.gov.cn/mfa_eng/topics_665678/xjpzxcxjzgjldrdlchwdbxagtwnrlgbjxgsfwbcxzlldrhw/t1176650.shtml

[3] http://english.gov.cn/archive/white_paper/2016/11/24/content_281475499069158.htm

[4] https://geopolitics.co/2017/05/13/list-of-attendees-to-the-belt-and-road-summit-in-beijing/

[5] http://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2017/09/china-sera-maior-investidor-em-projetos-desenvolvidos-no-brasil.html

[6] https://www.bu.edu/pardeeschool/files/2014/11/Economic-Bulletin.16-17-Bulletin.Draft_.pdf

[7] http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcostroyjo/2016/09/1813024-brasil-e-china-encontram-se-na-encruzilhada-da-globalizacao.shtml