Thiago Rodrigues – O 11 de Setembro: medo e guerra

11 septiembre 2011

Visão distante da ilha de Manhattan após as duas torres desabarem (Foto: AP)

Efeméride. Na procedência latina, “efeméride” significa “calendário” ou, no sentido mais utilizado modernamente, “data memorável” ou “fato a ser lembrado”. Esses fatos são, geralmente, vinculados a calendários oficiais como eventos que precisam ser, por um motivo ou outro, rememorados ou comemorados. Hoje, estamos às voltas com uma efeméride mundial: o 11 de Setembro.

Os acontecimentos impressionantes daquela manhã de 2001 foram modelados pelos discursos midiático e governamental dos Estados Unidos como episódio marcante que, por sua “infâmia”, teria mudado para sempre os rumos do país (e do planeta). Nesse sentido, os acontecimentos de 10 anos atrás foram transformados pelos EUA em “data memorável” não apenas para os estadunidenses, mas para todos e cada um.

Então, nas vésperas do aniversário dos atentados em Nova York (o World Trade Center) e na Virgínia (o Pentágono), abundam os documentários, as reportagens que relembram o dia, as entrevistas com especialistas, as matérias que supostamente acrescentam novos dados, novas imagens ou declarações inéditas de personalidades políticas ou de anônimos. Reforça-se, portanto, a construção de um memorial não apenas concreto – aquele a ser inaugurado no Marco Zero (Ground Zero) de NY –, mas também outro, mais abrangente e imaterial, constituído pela repetição exaustiva de imagens e sons que, nessa década, produziram o 11 de Setembro como efeméride.

Essa produção do 11 de setembro foi e é uma ação política, na medida em que permitiu a declaração e a manutenção de uma guerra de novo tipo, na qual países – os EUA e seus aliados – identificaram como alvo não outro país, mas grupos ou “redes”, como a Al-Qaeda e organizações associadas a ela. A chamada guerra ao terror não é uma “guerra clássica” porque não opõe Estado a Estado, mas Estados a agrupamentos dessemelhantes sem endereço fixo, sem hierarquia equivalente, sem forças armadas comparáveis, sem protocolos diplomático-militares compatíveis. A capacidade de ocultar-se e aparecer dos terroristas contemporâneos, sua rapidez em circular pelos caminhos abertos com a globalização e sua habilidade para lidar com os mesmos recursos tecnológicos utilizados por empresas e governos mostrou que a guerra não ronda apenas as relações internacionais, ou seja, ela não se passa apenas no espaço que existe para além das fronteiras dos Estados num campo de batalha demarcado. A partir de setembro de 2001 ficou explícito que a guerra se exerce dentro e fora das fronteiras, que ela é constante ainda que não deflagrada todo o tempo e que não se resume aos combates tradicionais entre soldados nos fronts.

A experiência dessa guerra permanente detonou o medo. Indivíduos nos EUA e nos seus aliados começaram a temer a morte violenta a cada passo, cada respiração. O inimigo não tinha mais rosto reconhecível. O “muçulmano radical”, disposto a se suicidar para matar infiéis, poderia ser qualquer um, árabe ou não. As bombas poderiam explodir em qualquer lugar, a qualquer hora. E depois de 2001 vieram as bombas em Bali (2002), em Madri (2004) e em Londres (2005). O medo se espargiu. E com ele, as amedrontadas pessoas dirigiram aos Estados seus clamores por proteção. Assim, as medidas de exceção, a vigilância nos aeroportos, os grampos nos telefones, o rastreamento de e-mails, as invasões do Afeganistão e do Iraque, a tortura em Abu Ghraib e em tantas outras prisões clandestinas, a ativação do campo de concentração de Guantánamo, a eliminação de suspeitos (como Jean Charles de Menezes), o assassinato de Osama Bin Laden, dentre outros acontecimentos, passaram a ser justificáveis diante do medo.

Os atemorizados cidadãos das democracias ocidentais aceitaram o discurso que fez dos muçulmanos fanáticos suicidas. Legitimaram, desse modo, a guerra ao terror que acionou, nas palavras de George W. Bush, uma cruzada em nome da liberdade e da democracia contra o suposto “obscurantismo fundamentalista”. Poucos, no entanto, parecem ter notado como são simétricos os pólos dessa luta. De um lado, os EUA encamparam a defesa de valores tidos como inquestionáveis e universais (a democracia, as liberdades civis, os direitos humanos, o livre mercado, a tolerância). De outro lado, ficaram Bin Laden e os seus, apresentando-se como protetores de valores igualmente colocados como inquestionáveis e universais (a fé em Alá e Maomé, a superioridade do Corão, a validade da lei islâmica, a necessidade do Estado teocrático). Agora, no 11 de setembro de 2011, completa-se uma década não do “choque de civilizações” (entre o Ocidente e o Islã tomados como blocos homogêneos), mas do “choque entre universais”: o universal ocidental contra o universal fundamentalista islâmico.

Os dois universais são, portanto, simétricos. Ambos lutam pelo poder de uma forma de Estado e de uma determinada ordem sócio-política centralizada. Ambos consideram-se o “Bem” e têm o outro como o “Mal”. Ambos se baseiam em tradições culturais e religiosas centradas na figura do mártir: o profeta, o messias e o homem santo que morrem em nome da fé. Com quem está a verdade? Não há verdade: a guerra dirá qual é mais verdadeiro. Ou como diziam muitos povos antigos, a guerra mostrará o deus mais forte. Isso não é só religião: é política.

Os esforços da ONU de estabelecer uma definição única de “terrorismo”, para justificar globalmente a guerra ao terror, são vãos. O que é “terrorismo”? Seria um modo de ação, uma tática? Seria explodir edifícios e infra-estrutura, matar civis, provocar insegurança, assassinar autoridades do inimigo? Se fosse assim, o que diferenciaria a Resistência Francesa da Al-Qaeda? O que as diferencia é uma questão política: para um grupo qualquer, os seus combatentes são sempre heróicos e bravos. Não há, assim, definição de terrorismo que não seja política: o “terrorista” é sempre o outro, o inimigo que usa tais táticas.

Além disso, não há um só “terrorismo” que possa ser definido. Há terrorismos. A procedência contemporânea mais importante do terrorismo é o chamado período do Terror (1793-1794), durante a Revolução Francesa, no qual o Estado, em nome da verdade revolucionária (“universal” e “inquestionável”), executou milhares de “inimigos da revolução”. Essa forma de terrorismo – o terror de Estado – reemergiu no século 20 onde quer que tenham brotado “verdades universais e inquestionáveis” e, com elas, inimigos a serem torturados, presos e eliminados: na Rússia revolucionária, na Alemanha nazista, na Cuba do “paredón”, na China da “revolução cultural” e nas ditaduras latino-americanas instaladas em nome dos “valores cristãos e ocidentais”.

Não só em defesa do Estado praticaram-se terrorismos; contra ele, também. Foram homens e mulheres que lutaram contra o autoritarismo e o capitalismo em organizações como as Brigadas Vermelhas na Itália, o Baader-Meinhof na Alemanha, os Montoneros na Argentina, os Tupamaros no Uruguai, a VAR-Palmares (da qual fez parte Dilma Rousseff), o MR-8, entre outros grupos, no Brasil. Outros, ainda, foram e são terroristas para a criação de um outro Estado, como o Exército Republicano Irlandês (IRA), o Pátria Basca e Liberdade (ETA) ou a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Nesse conjunto todo, apenas os terroristas anarquistas, no final do século 19 e começo do século 20, como Émile Henry e Ravachol, assumiram-se terroristas afirmando um combate direto para a destruição do Estado e não para sua transformação, defesa ou criação.

O chamado terrorismo fundamentalista, desse modo, não é a quintessência do terrorismo. Ele é um terrorismo. Assim, o 11 de setembro de 2001 não registrou seu surgimento, já que suas procedências remontam mais de uma década antes disso, mas marcou sua emergência como acontecimento contemporâneo que se realiza transterritorialmente e que pôs em marcha uma guerra cotidiana que atravessa corpos, fronteiras e países. Uma guerra que tem nesse dia sua efeméride, sua data heróica e seus mártires.

Da mesma procedência etimológica de “efeméride”, mas na proveniência grega, há “efêmero” que significa “o que dura somente um dia”. Os atentados de 11 de setembro de 2001 não foram efêmeros porque ativaram efeitos que continuaram não apenas nos controles e iniciativas diplomático-militares de uma guerra constante praticada desde então, mas, também, porque se tornaram uma rotina, um programa de ação aplicado por grupos espalhados pelo globo e que se afinam em linhas gerais com o discurso da Al-Qaeda e agem associando sua imagem à dela. Para os fundamentalistas é provável que o 11 de setembro também seja comemorado como uma efeméride, com seus heróis e mártires. Eis a simetria.

O terrorismo fundamentalista provoca medo e susto, mas não surpresa. O medo, por sua vez, gera a difundida sensação de insegurança que acaba por reforçar o Estado como protetor. Sendo assim, o 11 de Setembro fez mal à saúde dos Estados Unidos – ou de qualquer outro Estado – no que diz respeito à crença no Estado como soberano protetor? Não é o que parece: enquanto houver medo, o Estado não tem nada a temer. Então, diante dessas efemérides e dessas violências, nesse mundo de simetrias e medo, haveria ainda espaço para a surpresa?

*Thiago Rodrigues é professor no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), vice-coordenador do Curso de Relações Internacionais da UFF, pesquisador no Nu-Sol/PUC-SP e autor de Guerra e política nas relações internacionais (Educ, 2010).

Publicado en: http://br.noticias.yahoo.com/o-11-de-setembro–medo-e-guerra.html?page=all